Aí que ontem cheguei a conclusão de que, realmente, pouquíssimas pessoas me conhecem mais do que a Ingrid. Tudo porque ela me mandou um poema lindo lindo que vou colar aí embaixo. 47, número primo. Adorei.
de Gonçalo M. Tavares:
47.
Às vezes escondo-me no corpo e ninguém vê.
As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas.
Posso até dizer algumas palavras,
Posso até exprimir-me num longo discurso,
Mas a verdade é que não falo com elas.
Estou escondido algures no meio do meu corpo.
Enfio-me todo no esôfago ou no centro da artéria aorta ou na veia jugular,
e, por vezes, quando estou mais tímido, chego mesmo a
esconder-me nos músculos da planta do pé.
Apesar de não saber os nomes destes músculos, escondo-me lá
muitas vezes.
Aliás, é melhor fugirmos para lugares de que desconhecemos,
o nome: ficamos ainda mais escondidos.
É a minha opinião.
A minha personalidade a refugiar-se inteira no dedo mínimo
do pé esquerdo, vejam bem.
Por vezes acontece-me.
O meu Eu alojado no dedo mínimo do pé esquerdo.
Os mais importantes pensamentos concentrados no dedo
mínimo do pé esquerdo.
As minhas sensações mais íntimas escondidas no dedo
mínimo do pé esquerdo.
Quando me pisam é que é uma desgraça.
Só se tiver a sorte de me pisarem o outro pé.
Quando me pisam o pé mais importante começo a gritar; e
começar a gritar é o começo do fim.
Quando gritamos não nos podemos esconder.
O corpo vem todo à pele ver o que se passa.
A pele é como uma janela.
Quando gritamos de dor, todas as células do corpo vêm à
janela, ou seja, à pele, para assistir à procissão.
Mas há muitas células do meu corpo que não concordam
totalmente com as minhas idéias.
Obedecem-me porque não têm alternativa, mas pelas costas
gozam-me e por vezes insultam-me.
Prefiro mesmo os insultos.
Os insultos são pequenas pancadas vindas do fundo
dos órgãos.
É mais ou menos suportável.
O terrível é quando se põem a rir de mim.
Eu digo:
- Sou um grande acrobata.
e sinto logo algumas células a rirem-se.
As costelas abanam todas.
Os dentes é como se tivessem muito frio.
Os dedos dos pés encolhem-se.
É como se soprasse uma rajada de vento no meio do corpo.
Ainda por cima riem-se de quem as alimenta.
Se isto não é ingratidão, não sei o que é ingratidão.
Células más, um dia ainda vos mato.
O problema é que elas me têm por refém.
É impossível matar as próprias células do corpo sem morrer.
Parecendo que não, esta vida é muito complicada.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
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